★ ★ ★ DISPUTA PELA CRUZ DOS BANDEIRANTES ...
(Por Luís Estevam)
Os objetos históricos têm valor incalculável e geralmente são disputados por colecionadores e museus. Tanto que, o governo de São Paulo ofereceu uma quantia fabulosa pela
"Cruz do Anhanguera",
exatamente há cem anos, objetivando resguardá-la, para visitação, no museu do Ipiranga.
A proposta, na época, não foi aceita pelo governo de Goiás. Contudo, ao invés de preservar a valiosa relíquia, colocaram-na em um pedestal, sob chuva e sol, por mais de 80 anos, até ser arrastada por uma enchente do rio Vermelho.
Hoje os restos da cruz estão encostados em uma parede de museu daquela cidade e sendo reclamados, mais uma vez, por Catalão, município de onde foi retirada de forma compulsória, através de um decreto governamental.
Desde o momento em que foi arrancada do solo, em 1914, a chamada
"Cruz do Anhanguera"
se tornou objeto de cobiça e de controvérsia historiográfica. Carrega uma longa história que merece ser revisitada, ainda mais em 2022, ano em que se comemora 300 anos da passagem da expedição do Anhanguera.
Na época das bandeiras, as expedições ao sertão costumavam levantar enormes cruzes para divulgar a fé cristã entre os índios, marcar rotas topográficas, apontando direções e caminhos percorridos. Geralmente ao pé do cruzeiro, utilizando ferro e fogo, rabiscavam a data em que o lenho foi erguido, como se registrando a posse ou comprovando passagem por aquele local, na intenção de futuras cobranças de pedágio.
No caso de Catalão, a misteriosa cruz esteve fincada, por cerca de 170 anos, nas imediações do Sítio dos Casados, fazenda pertencente à família Mariano, local antigo de pouso e hospedagem na estradinha que vinha de Catalão rumo a São Paulo. Era uma passagem bastante conhecida, que foi utilizada pelo botânico Saint Hilaire, que cruzou pelo Sítio dos Casados na sua viagem em direção ao Mato Grosso. A região, próxima ao rio Paranaiba, era reduto de familiares do Índio Afonso, um bandoleiro que vivia em frequentes conflitos com fazendeiros das cercanias.
A cruz, embora de origem misteriosa, era conhecida na região. Até que, em 1914, foi reconhecida como valioso marco histórico pela maçonaria de Catalão e pelo juiz de Direito do município, o vilaboense Luiz do Couto. Foi então retirada do local e conduzida para as dependências da maçonaria em Catalão, sendo associada à passagem do bandeirante Anhanguera Filho em 1722.
A data inscrita ao pé do lenho não confirmava tal conclusão porque se encontrava parcialmente desgastada pelo tempo. Mesmo assim, o vilaboense Luiz do Couto a batizou como
"Cruz do Anhanguera"
e, por decreto estadual, ordenou sua transferência, em 1916, para a Cidade de Goiás. Evidente que, a remoção da cruz não foi pacífica e criou mágoas na comunidade catalana.
O fato é que, o governo de São Paulo, ao tomar conhecimento do episódio, enviou alguns peritos para analisar a autenticidade da cruz, propondo levá-la para o museu do Ipiranga. Ficou comprovado que o lenho era realmente do século XVIII e que se tratava de um daqueles antigos cruzeiros da época das bandeiras paulistas que sobrevivera intacto ao longo do tempo.
A investida foi feita pelo governante do estado de São Paulo, Altino Arantes, querendo se apossar do achado, justificando que, na época, o território goiano pertencia a São Paulo. Essa pretensão, denunciada pelo jornal
"Nova Era",
em novembro de 1916, foi barrada pelo então governante do estado de Goiás, Olegário Pinto, atendendo solicitação do vilaboense Luiz do Couto.
Alguns anos mais tarde, São Paulo fez outra tentativa de levar a cruz para o museu do Ipiranga, que estava para completar trinta anos de funcionamento. Na época, era governante daquele estado, o advogado e historiador Washington Luiz que, logo depois seria eleito presidente da República. Washington Luiz enviou uma comissão oficial até a Cidade de Goiás, portando 15 contos de réis, para aquisição da
"Cruz do Anhanguera",
que já estava fixada em um monumento na velha capital.
Quase uma fortuna. Para se ter uma ideia, 15 contos de réis foi a quantia que Getúlio Vargas doou, uma década depois, para Pedro Ludovico iniciar a construção de Goiânia. Valor empregado na construção do Grande Hotel e em parte dos edifícios públicos.
O juiz Luiz do Couto influenciou o governo de Goiás a não aceitar a tentadora proposta de São Paulo. Mesmo porque, como iria explicar a retirada da cruz de Catalão e sua posterior negociação? Além do mais, ela já estava festivamente inaugurada, desde 1918, em um belo pedestal na Cidade de Goiás. Naquele ano, quando se comemorou o primeiro centenário daquela cidade, a
"Cruz do Anhanguera"
foi utilizada como o marco das comemorações.
Entretanto, continuaram as discussões com relação à data inscrita no lenho da cruz. O historiador Henrique Silva, em
"A Informação Goyana",
jornal editado no Rio de Janeiro, em edição de 1927, defendeu que a inscrição aponta para
"1746", e não "1722",
conforme deduzira Luiz do Couto.
Até mesmo nos dias de hoje, apesar dos desgastes no lenho, alguns pesquisadores garantem que a inscrição é, de fato,
"1746"
como, por exemplo, argumenta o padre Murah Rannier Peixoto Vaz, responsável pela paróquia de Cumari, cidade vizinha do local onde a cruz foi retirada.
De qualquer modo, seja qual for a data correta, 1746 ou 1722, trata-se de um valioso objeto histórico do século XVIII, quando nem existia a Capitania de Goiás, que somente foi instituída em 1748.
Sem dúvida, a cruz dos bandeirantes tem inestimável valor cultural e histórico. Mas, o valor extraordinário que possui se ampara no sentimentalismo dos catalanos que não concordaram com sua transferência para a Cidade de Goiás, onde existem centenas de outros valiosos marcos do passado.
Afinal de contas, a cruz era a única marca histórica que Catalão tinha, desde quando alguns integrantes da expedição ali ficaram, plantando roças, conforme relato do próprio escrivão da bandeira do Anhanguera, e de lá nunca mais saíram.
Postar um comentário